Nota máxima com louvor

Todo ano a escola promove um Passeio Ciclístico no Parque Villa-Lobos com os alunos da Educação Infantil e do Ensino Fundamental I. Nossa intenção, além de buscar uma situação de convivência entre alunos, pais e educadores, é promover a prática de atividade física, incentivando os alunos a aprenderem a andar de bicicleta e a se aperfeiçoarem nesta atividade. Assim, quando pequenos, vão com suas bicicletas de rodinhas e aos poucos vão aprendendo a se equilibrar, prescindindo delas e se tornando capazes de dar várias voltas na pista. É claro que alguns tombos e esfolados acontecem. Afinal, aprender nem sempre é fácil! Nossa Diretora Pedagógica, Ausonia Donato, não teve a oportunidade de aprender a andar de bicicleta na infância, mas para nós é um exemplo de força de vontade: todo ano participa do evento dando a volta em toda a pista num triciclo.

Vejam a crônica da Drica, sua fiel instrutora, sobre seu processo de aprendizagem ao longo desses anos! Esperamos que ela seja um estímulo para novos aprendizados de nossos alunos e educadores!

 

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Nota máxima com louvor
Adriana Mangabeira

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Há anos atrás, no nosso primeiro passeio ciclístico, por algum acaso amoroso realizei o percurso seguindo a nossa ilustríssima diretora pedagógica Ausonia Donato, que os organizadores do evento, nossos professores de Educação Física, ‘codinomeiam’ Monstro Sagrado.

Neidinha, sua fiel escudeira, mais que filha, estava louca para andar no seu fabuloso triciclo praiano, mas começou acompanhando a pé, pela grama lateral à pista, a nossa heroína, que se dispunha a realizar a tal proeza de percorrer a pista de bicicleta do Parque Villa Lobos num triciclo rebaixado, para mim um velocípede gigante, aparentemente sem nunca ter andado em nada parecido.

Acontece que o terreno começa a descer suavemente e a gente foi pegando velocidade – nada comparado ao ritmo normal da pista, na qual éramos constantemente ultrapassadas por crianças, adolescentes e famílias passeando, mas demais para uma Neidinha correndo sob o sol.

Da minha bicicleta, eu só conseguia gritar… “Vira um pouco pra direita!”; “Agora um pouco pra esquerda, mais um pouco. Aí…”; “Breca, breca, breca, vai brecando!”

Estava surpresa com a coragem e ousadia da mestra, mas sentia um nervosismo crescendo e se instalando, doendo no peito.

Quando a Neidinha estava com a língua de fora, o suor encharcando, e achamos que nossa ciclista já tinha alguma condição de virar o guidom para os dois lados e brecar, ela deixou de nos acompanhar e voltou para fazer seu próprio passeio. E nós, ladeirinha abaixo, como numa serra radical!

 

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Ciclistas e mais ciclistas, todos da escola, passavam por nós e gritavam: “Ausonia!”, “Oi, Ausonia”, “Êh, Ausonia!”, “Viva, Ausonia!”, “Parabéns, Ausonia!”, um sem fim de cumprimentos que, quem a conhece, sabe que fazia questão de responder, um a um, e ainda tentava saber quem tinha falado, mas nem eu às vezes dava conta de olhar. “Quem era, filhinha?” E eu de olho na roda direita de trás do triciclo, temendo que pegasse na borda da calçada e ela capotasse. “Se afasta um pouco da calçada, tá muito perto!” Uma curva: “E agora, filhinha?” Três biciletas paradas na pista, pais ajeitando seu filhote na bike: “Ai, filhinha! E agora? E agora?” Uma turma no contrasentido, gritando “Êhhh! Ausooonia!”, e eu gritando “Breca, breca, espera essas biciletas passarem, agora desvia, vira prá esquerda, isso, agora vai voltando, acerta, acerta, breca, breca, pronto, é só continuar…!”

Confesso: eu suava frio. Acho que ela também.

Uma hora bateu o desespero, o triciclo foi pegando velocidade e lá na frente tinha gente parada na pista, eu gritava “Breca, breca!” e ela gritava “Socorro, filhinha, socorro!”

Acho que todo monstro sagrado deve ter um protetor. Nosso anjo vinha de bike na contrapista, largou a geringonça de qualquer jeito na grama, saiu correndo e segurou o bólido destrambelhado. Era o Nando, o perueiro onipresente, salvador da pátria. Meu coração ia na boca. Não sei como o da Ausonia não parou.

Agradecemos e retomamos – avaliem a coragem da nossa líder! Não dissemos nada, mas o Nando, talvez assustado, foi seguindo com sua função de anjo guardacostas. Acho que soltou sua bicicleta mais uma ou duas vezes, talvez mais para acalmar a Ausonia ou a si mesmo, porque cada vez mais ela ia bem: brecava, virava o guidom, desviava. Tínhamos a nosso favor que estávamos retornando, de forma que a pista agora subia um pouco e tudo se mantinha mais sob controle. Os músculos da coxa em frangalhos.

 

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O que deveria, no entanto, ter sido uma aventura única, se repetiu ano a ano. As mãos doíam para apertar o breque, então providenciei luvas. O sol estava forte, lhe dei um boné. Nossa ciclista foi se especializando. Sem medo da descida e com a sabedoria que só a experiência permite, seguíamos em frente ao final da pista, passando pela entrada do parque para retornar ao nosso ponto de encontro sem ter que voltar tudo de novo, pedalando na “subida”, aquele sol que acaba com um sujeito. Tínhamos que ir bem devagar, porque essa parte não era mais uma pista e ficava repleta de gente passeando, correndo, andando de skate, cruzando de bike. Nosso monstro, delicadíssimo, nunca atropelou ninguém nem precisou mais que segurassem seu triciclo. Dava conta de tudo sozinha, com uma ou outra orientação minha, que ia atrás acompanhando.

2014. Sou sua dama de companhia oficial. Cumprimentos, fotos e lá estamos nós de novo na pista. Ela é como uma celebridade desfilando em carro aberto e já dá conta de acenar, sorrir. De vez em quando pergunta “Você tá aí, filhinha?”, e arremata aliviada “Ah, bom.”; ou “Eu to indo bem, filhinha?”, e adora os elogios, embora os refute com um “Ah, vá, vá, vá…!”

 

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Pois não é que levamos um susto? No final da pista, aquela descidinha que ninguém sente fez as vezes de uma serra íngrime, pegamos aquela velocidadezinha a mais e no final vinha uma curva mais fechada. Eu distraída, confiante, olhando o parque.

— E agora, filhinha?

— Breca! Faz a curva!

— Ai, filhinha, ai, filhinha…

Não deu. Via que não brecava nem fazia a curva e ia entrar de frente em um muro. Numa cartada intuitiva, saltou do banco e meteu os dois pés no chão, brecando imediatamente, num tranco tão violento que quase bati nela e acabei parando num soco também.

Que susto! Que susto! Que susto…

Ficamos ali nos recuperando, a adrenalina a mil, o coração pelas tampas, as pernas mal sustentando o corpo.

Ela me pediu que não contasse nada a ninguém, pois tinha vergonha.

Não deu. Ela mesma chegou na reunião contando que estava com o corpo todo dolorido, que tinha dado um tranco…

 

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Então contei. Eu não estava preocupada com aquela vergonha, estava orgulhosa, porque ela podia ter batido de frente, podia ter tentado fazer a curva e capotado, e tinha evitado um acidente que podia tê-la machucado feio, dá medo até de pensar.

Vocês conhecem orientador de escola? É um povo exigente. Veio a polêmica. Eu dizendo que a Ausonia já era uma ciclista de mão cheia, que eu já dava a volta inteira sossegada atrás dela, olhando o movimento, e que tinha até evitado um acidente, então para mim ela merecia nota 10. O grupo contra-argumentava que ela não tinha brecado, que não tinha feito a curva, que onde já se viu meter os pés no chão para brecar e levar um tranco daqueles, que levava no máximo um 7.

Ficou aquela gritaria educada de gente da escola, então escrevo para arrematar a discussão e esclarecer o resultado final.

Meus argumentos: 1. aluno bom decide com autonomia, e foi o que nossa aprendiz fez, mostrando que na hora do aperto não precisa de manual ambulante nem anjo salvavidas, que dá conta de mobilizar seus recursos e se virar sozinha; e 2. é minha aluna, então quem dá nota sou eu – professor que é professor não pode abrir mão dessa decisão, mesmo que polêmica.

É nota máxima, com louvor!

E ano que vem tem mais!!!

 

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