Em alguns desses que são agora 50 anos do Colégio Equipe
Vejo um par, quartetos e mesmo hordas de pés e pezinhos que caminham lado a lado, alguns sobem saltitando as escadas, outros param em pequenos grupos de conversa. E há ainda os que estacionam apoiados somente nas pontinhas para fazer encaixar os livros da última aula na primeira linha de armários perto do chão – e esses geralmente geram congestionamentos e acúmulos populacionais no meio do corredor, acompanhados de pequenos atos sonoros de reclamações e de risos. O caos, as risadas, os segredos, o palavrão que escapa inadvertidamente nos corredores da escola – é a vida que pulsa e que move. Levam alguns instantes para que da presença de dezenas de corpos se faça o espaço, mas não o vazio. Nos corredores do Equipe não habitam silêncios-imóveis. No armário, a intervenção do grupo de estudos feministas, o jornal do Grêmio afixado à parede, e em cada sala aparentemente quieta há uma pergunta, talvez a mesma que me acompanha desde meu primeiro dia de trabalho no Equipe: “Como se ensina a perguntar?”. Meu nome é Paula, e eu sou professora de Teatro do Fundamental II.
A aula começa, mas geralmente antes do tempo, eles já estão na sala (ou na porta, pendurados na janela… já não sei muito bem… a memória prega cada peça na gente!). Uma parte do grupo senta num ‘quase’ círculo ‘quase’ bem-feito, enquanto a outra parte ainda tira os sapatos antes de entrar na sala; e outros ainda se encontram distantes da porta e perguntam insistentemente se “podem beber água, porque na aula de Educação Física teve teste de corrida hoje, e eu tô acabada (…)” e… bem, e nesse momento chega J. para perguntar pela terceira vez consecutiva “Hoje eu SOU Teatro ou Artes?”, referindo-se à divisão das turmas de um mesmo ano entre as duas disciplinas artísticas. Eu mal tenho tempo de levantar o olhar enquanto digo “Água, sim, pode”, ao mesmo tempo em que O. diz a J.: “Na terça ERA Teatro ou Artes? – Teatro. – Então hoje você É Artes! – Ah! Valeu”, e J. sobe as escadas afobado e satisfeito por ter sido ajudado. Finalmente toca o sinal, os últimos vão caçando seus lugares na roda, sentados no chão, ao que R. pergunta (pelo quarto ano consecutivo): “Tem que alternar menino e menina?”. Por um momento, meu pensamento escapa – é curioso ver R., quase dois metros de altura, timbre grave a gravíssimo recentemente adquirido, dizer “menina/menino”. Novamente, não faço em tempo de responder, e ouço O. que afirma: “Sempre! A gente tem que alternar inteligências masculinas e femininas!”. Todos riem. Eu também. Aos poucos o riso vai cedendo à pausa. O silêncio se faz para que, juntos, possamos começar a jogar. Confesso que ainda hoje, na distância dos meses que me separam dessa aula, comemoro a construção desse silêncio conquistado.
A educação não é um ato construído de certezas – e essa é ambiguamente uma certeza que se fez bagagem no meu corpo de educadora do Equipe. Há caminhos, percursos, há ciência na educação, há a experiência de quem veio antes, os livros, o estudo, o re-estudo, há o erro, a reflexão sobre o erro, o ajuste e as tentativas necessárias, há o cansaço no fim do dia, da semana, do semestre, do ano, e há o desejo, a inquietação, a socialização, o planejamento, o planejamento, o planejamento, e há o estudo sobre como fazer um planejamento, e a aula, e o intervalo, e a conversa com os colegas (e que colegas! eita povo arretado admirável porreta que dá orgulho de trabalhar junto!), e há a frustração, a aula que não deu certo (hoje não deu certo, não deu…), e de novo há o cansaço, mas no ato educativo a gente tá ali, em pé. Pé. A gente não arreda pé. Porque certeza, certeza mesmo, de fato não dá pra ter muita. Não a certeza que imobiliza, congela, que não deixa imaginar além. Quanto mais certeza, mais difícil é tirar o pé do chão. E a gente gosta mesmo é de voar, seja em “vida vivida ou vida inventada”, dando passo maior que a perna e criando mundo e seres e paisagens numa “pasta vermelha”, e de pernas pro alto no grito de guerra de “Hooligans e Picachoo”(HOOOLIGANS!!!), e de sentir o tremor nas pernas durante as “Olimpíadas de Matemática”, e de ficar atento a não meter os pés pelas mãos no “Laboratório de Ciências”, e de pisar mansinho nos corredores antes de invadir uma sala para um “Flashmob”. A gente escolhe ‘Problematizar’, investigar a estrada da pergunta, sabendo que o mundo não é matéria pronta, definida, e que as estradas a percorrer são inúmeras, além de todas aquelas que podem ser abertas – e que esta é uma construção solidária.
Confesso – ainda que protegida pela distância que a letra cria entre eu e você –, tenho que ser sincera. Como educadora do Equipe, cultivei comigo uma outra certeza. (Re)vejo na memória os ‘moleques’, as ‘minas’, os ‘caras’, a ‘galera’… Revisito os rostos, as aulas, os discursos, as cenas, as conversas… E confio que, no futuro, não existirão silêncios-rígidos, mas a potência do encontro sem palavras. Também acho que não existirão silêncios-amedrontados, mas palavras coletivas, escutadas, discutidas e, sobretudo, problematizadas. E mais que tudo, confio cegamente que os silêncios não serão nunca mais imóveis, privados da possibilidade de se movimentarem, de traçarem caminhos ao infinito, seja guiados pela organização ou mesmo pelo caos, o mesmo caos que deixa entrever a potência da vida em cada passo dado pelos corredores da escola.
Paula Carrara
Professora de Teatro em licença na Itália