Eu vou falar de alguma coisa simples. Ao me debruçar sobre esta lei, me foi custoso entendê-la. Por quê? Acho que dentre os motivos, pela primeira vez me deparo com um texto legal que não se refere à formação do cidadão como uma das principais finalidades da Educação. É claro que algumas leis falam também de outros objetivos, como, por exemplo, formar para o trabalho, mas a questão da cidadania sempre esteve presente. O que é muito estranho, pois desde o século XIX, com os Sistemas Nacionais de Ensino, proclama-se que “a educação é um direito de todos e dever do Estado” (no Brasil só acontece na década de 30 do século XX).
Com a Revolução Francesa, a burguesia, ao assumir o poder, defende a constituição de uma sociedade democrática e, para ascender a um tipo de sociedade fundada nos princípios da igualdade, fraternidade e liberdade entre os indivíduos, era imprescindível vencer a barreira da ignorância. Assim surge a necessidade de transformar os súditos em cidadãos, transformação esta que se realizava por meio da escola. Outro ponto é que, para identificarmos e caracterizarmos as tendências pedagógicas, nos valemos, dentro de outros aspectos, da visão que temos de cidadania. Isto é: que cidadão queremos formar.
Na escola tradicional, por exemplo, cidadão era letrado, ilustrado, aquele que tinha conhecimento. Vencia-se a ignorância para se formar um cidadão, ou seja, aquele que sabia. Por isso a escola tradicional usava a transmissão de conhecimento, a leitura dos clássicos, a formação em muitas disciplinas. Com a mudança de paradigma dentro da educação, deixa-se de se achar que o cidadão é aquele que conhece, que é esclarecido, e passa-se a adotar aquele que é aceito. Houve uma época em que se afrouxaram o conteúdo e a disciplina para que os alunos se sentissem aceitos. Então o cidadão era aquele que se sentia aceito na sociedade e na pluralidade.
Mais para frente, numa outra tendência pedagógica que é chamada de tecnicismo, o cidadão é considerado produtivo, competente e eficiente, aquele que produz resultados. O papel do professor foi mudando conforme as tendências. Nesta lei, você tem que inferir o papel do professor. Na pedagogia tradicional, o papel do professor era transmitir conhecimento. Na tendência chamada Escola Nova, a da aceitação incondicional do aluno, ele passa a ser um facilitador da aprendizagem. Depois, o professor deixa de ser um facilitador ou um transmissor e passa a ser um arranjador de contingências; ele está submetido à tecnologia.
Aí a gente vai crescendo, vai evoluindo, com as experiências das escolas vocacionais e experimentais, o professor passa a ser um coordenador do processo de ensino-aprendizagem, um promotor, alguém que dirige, orienta o processo de ensino-aprendizagem. O professor passa a ser autor do próprio trabalho. Foi uma grande conquista. É claro que a escola não está isolada do seu contexto histórico; está regida sob legislação, faz parte de uma comunidade, mas o professor, dentro desse contexto, pode fazer suas escolhas curriculares. Na chamada Escola Crítica, o professor resgata sua autoridade legitimada pela sua prática pedagógica; o professor trabalha nas três dimensões da prática pedagógica: o saber, o saber ser e o saber fazer, como nos ensinou José Carlos Libâneo. A articulação disso chamamos de metodologia.
Isto posto, se não tem o papel da cidadania nesta lei, a gente não sabe o que se pretende com ela. Recorri ao pensamento de Milton Santos (um advogado que se tornou um dos maiores geógrafos da América Latina). Ele nos diz que há três tipos de seres sociais: um que ele chama de cidadão, outro que ele chama de consumidor e outro que ele chama de usuário. Eu acho que eu entendi por que nesta lei não está escrito cidadão, porque cidadão é aquele que conhece, tende a praticar os direitos sociais e luta coletivamente para consegui-los. Este é o cidadão. Continuando com os referenciais de Milton Santos, o consumidor também conhece os seus direitos, só que briga individualmente por eles, tem uma relação com o mundo que é uma relação de compra (“eu quero que esta escola funcione bem porque eu pago!”), a relação é de compra, não é de direito. Sempre individualmente, o coletivo não existe para o consumidor. Eu também não identifiquei nesta lei o consumidor, só se fosse consumidor de ideias do professor; o aluno não recria as ideias, só consome. Mas pensando bem, acho que esta lei quer formar o usuário, que é aquele que se relaciona com o mundo de uma forma alienada, onde tudo o que acontece não tem nada a ver com ele; aceita tudo sem discutir. Eu acho que esta lei quer formar o usuário.
Um outro ponto: a gente sabe pouco sobre nosso objeto de trabalho, que é a aprendizagem. Mas o pouco que se sabe sobre aprendizagem, parece que esta lei desconsidera. Por esta lei, parece que, para aprender, basta o aluno estar sentado escutando, ou seja, se baseia naquele esquema: diante do estímulo, o aluno já dá uma resposta. Mas o que é isso? O mesmo esquema de condicionar animais! Isso é condicionamento, não é educação. Educação é outra coisa. Segundo a concepção desta lei, o professor fala e faz a cabeça do aluno. Imagine se isso é possível! O ser humano não é tão manipulável assim! E que bom que não é!
É impossível fazer a cabeça de alguém assim, até porque aprende-se por diversas fontes, o professor é apenas uma delas. A gente aprendeu que entre o estímulo e a resposta, a gente tem o indivíduo, que tem suas motivações, seus receios, seus medos, tem também o seu repertório cognitivo, suas experiências, é capaz de se posicionar, de criticar. Também tem seus valores, suas crenças. Isso tudo. E isso tudo tem que ser considerado no processo de aprendizagem. Assim, esta lei revela uma visão restrita sobre o próprio processo de ensino-aprendizagem, que se constitui no objeto de trabalho do educador, ou seja, é impossível aprender sem buscar, sem refletir, sem relacionar, sem criticar e sem problematizar. Dizendo de outra forma, aprender sem transformar.
Fala de Ausonia Donato no evento “Escola Sem Partido ou Sem Reflexão”, organizado pelo Instituto Equipe em 1º de setembro de 2016.