EU DE VOCÊ ou ELA DE NÓS

Em dado momento ela abre algo como uma pochete interna e retira lá de dentro (de si?) mais um relato. Como se nesse momento marcasse que todos aqueles seres ali vividos nasceram dela, saíram de dentro dela, em partos que se deram com os envios dos relatos, mas que são, todos, também ela.

Já em outro momento ela precisa dizer que ela, Denise, jamais saberá o que é ser uma mulher negra. Sinal dos tempos. “Lugar de fala” se tornou algo discutido / defendido de forma a que uma interpretação precisa dessa explicação.

A pessoa que foi escolhida para ser “parida” em uma cesariana figurativa em cena, com o texto escrito em um papelzinho que sai do ventre, com toda a delicadeza que a atriz tem para apresentar mais um ser, é a única retratada sem nome. Deve ter enviado seu relato assinado como Denise e Luiz (o diretor) optaram por trazê-la a nós: Educadora Míope. A educadora que anos depois reencontra seu aluno. A educadora que interpôs o cabo de vassoura entre o ventre que carregava um bebê (de fato) e o aluno a quem temeu. A cena nos faz ver o pânico de que aquela criança machucasse a sua. Traz-nos as desculpas da professora àquele homem adulto. Fosse o texto enviado por ele, talvez trouxesse o ciúme por aquela criança que afastaria a professora de seus alunos, o medo da perda do cuidado, da divisão do afeto. Ambos temeram perder.

Os textos apresentam as visões de um sujeito, não poderiam dar conta dos outros que com eles interagiram. Mas essa professora pode redimir a que nos inicia no espetáculo, aquela do “quase”, do “por um triz”. Qual das professoras faz mais por nós? Qual delas nos modifica mais? Dependerá certamente da subjetividade de cada espectador.

O terapeuta que é lançado à relação paterna na escuta de seu paciente coloca-nos identificados com o analista? Com o paciente? O silêncio enunciado naquele relato pode ser contraposto com o chamado pela mãe à beira-mar (Mãe da atriz? Mãe de um dos protagonistas que enviaram relatos?). Ali o medo da perda é visceral. O grito nos traz uma menina de 5 anos na praia (Denise?). A criança nos emociona mais que a pessoa madura que descobre, pelas canções, o brilho nos olhos da mãe fragilizada? Dependerá do espectador.

Mas Denise Fraga é Denise Fraga, independente de quem são os espectadores e do que mais os toca a partir dela. Ela mantém-se recebendo o público e interagindo previamente com pessoas, há algumas produções. Nessa, não é colocada uma peruca que define uma personagem, como anteriormente. O cabelo é o dela, preso, deixando todo o rosto à mostra, para ser quem quer que seja – ou quem quer que queiramos que seja. E quem viveu Galileu Galilei (montagem de 2016) nos olha com espanto na pergunta-exclamação: “A Terra é plana?!”, possivelmente tendo a posição de quase ponta-cabeça como intenção, mais ao final do percurso dos textos / canções / movimentos – emoções, que nos são oferecidas.

As minúcias são mesmo uma marca em Eu de Você. Uma montagem para ser vista muitas vezes, pois a cada uma, novos detalhes se evidenciam e novas costuras se compõem. Vemos tantos que escreveram para que a peça fosse criada, vemos a nós mesmos e a tantos com quem convivemos ou a quem imaginamos – até ela, Denise.

 

Graça Maria Marino Totaro
Psicóloga e Educadora