Arte não nos serve em nada

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Vivemos já habituados aos lugares alheios ao pensar, nos quais a atividade crítica leva sinal negativo. Já não estranhamos o discurso da positividade que guia o que para muitos aparece como uma “alternativa” à educação formal e que despreza nossa capacidade de nos questionarmos sobre a razão de nossos aprendizados. Estamos conectados a uma rede de comunicação que disponibiliza as mais variadas formas de instrução, programas de treinamento para a solução de problemas práticos, e de cuja formulação nunca somos chamados a participar. Temos nos preparado para responder a comandos de todo tipo de aparelho continuamente, competência que, se limitada a si mesma, pode nos tornar, no máximo, funcionários preparados para tarefas previsíveis. Diante desse quadro, como se justifica o exercício de análise e crítica de arte como lugar de aprendizado? Além de parecer inútil, a obra de arte não seria justamente a produção que, por sua singularidade, tende a resistir a toda teorização prévia, visto que o discurso produzido sobre ela não chega nunca a desvendá-la completamente? Certamente. E é por essa razão que o desenvolvimento das capacidades analíticas para os desafios colocados por objetos como os trabalhos de arte se torna cada vez mais importante do ponto de vista educacional.

A partir da experiência em situações de ensino-aprendizagem propostas a estudantes há muitos anos, parte integrante do ensino da disciplina de Artes do Colégio Equipe, a importância de garantir um espaço de elaboração de análise crítica e estética de produções em arte contemporânea se faz cada vez mais evidente. Um exemplo, talvez dos mais pontuais em relação ao projeto pedagógico da escola, é a visita que a turma do curso temático “Arte e ideologia” faz semestralmente a uma exposição de arte para um exercício in loco de análise de obra por meio da escrita. Nessas ocasiões, estudantes são desafiados a elaborar uma análise de trabalhos de arte contemporânea estando em contato direto com esses objetos estranhos pela primeira vez.

As imagens que acompanham este texto se referem ao trabalho em exposições ocorridas no MAM, Museu de Arte Moderna de São Paulo, e registram de modo parcial o movimentar-se de nossos alunos pelo espaço expositivo. É difícil prever, como aliás para quaisquer visitantes do Museu, o que determina a opção destes escritores quanto ao seu recorte no contexto da exposição. Ainda assim parece haver um disparo inicial comum para a constituição dessas relações inventivas de interlocução entre o sujeito e seu objeto: uma pergunta que se dirige ao objeto e que retorna aos estudantes.

 

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Essa primeira relação entre crítico e obra muitas vezes se configura como um espaço de reflexão em que quem elabora questões recebe de volta seus questionamentos em seguida, num contínuo refinamento. Mesmo um estudo de longa duração e aprofundamento é disparado por uma indagação, questão ou dúvida inicial que ao perguntador se coloca como fundamental para a elaboração de seu próprio lugar no mundo, e que se torna motor de uma série de reflexões mais adiante. Não é pouco, então, o que pretendemos possibilitar por meio desse exercício. Demandamos dos estudantes uma postura que não se contenta com a primeira resposta, uma atitude de investigação e descoberta, que possibilita uma mobilização em direção aos seus interesses. Mas como criar esse espaço de elaboração nesse momento específico do processo?

No trato com o espaço museológico, acreditamos que nossa estratégia deva procurar uma posição na dinâmica de trabalho que possa garantir um tipo muito especial de silêncio. Não um vácuo de falas ou colocações, mas um silêncio que possa significar a possibilidade de apropriação pelo estudante de seu lugar de reflexão, de autoria.

 

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Ocupar o lugar de estudante é perguntar-se. Mas a relação com os objetos de estudo depende também de como lidar com a angústia causada pelo vivenciar das perguntas. Em circuitos em que toda informação ou dado chegam ao receptor antes de qualquer pergunta, em meios em que toda demanda é satisfeita antes mesmo de ser percebida, não há elaboração possível, e qualquer tempo de espera gera uma espécie de frustração aparentemente insuportável.

Próprio da linguagem da propaganda, o excesso discursivo acerca do que se está prestes a ver, e a assertividade dos discursos sobre como se deve reagir ao que se vê, percebe e sente, não pretende ampliar os recursos investigativos do público. Trabalha, aliás, no sentido de padronizar suas reações, visto que sua eficácia é medida por sua capacidade de prevê-las. Nossa proposição vai de encontro a isto. A oferta de resposta sobre algo complexo antes mesmo da formulação pelo estudante de uma questão, pergunta, dúvida ou, ao menos, surpresa, impossibilita o pensamento autoral e reflexivo. É preciso respeitar minimamente esse tempo de formulação, por mais angustiante que o processo possa parecer.

 

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Onde se inicia o museu, esse espaço definidor do que chamamos de arte? Talvez desde a escola, o espaço do museu já se desenha enquanto sistema gerador de critérios. Por isso é interessante não delimitar o início do espaço por meio de uma fala de apresentação, como se da fala do professor dependesse o início da atividade do pensar, do perceber. Há algo de disponível da experiência com o espaço museológico assim que saímos da escola em direção ao museu.

Além disso, a escola tende a se replicar em termos de comportamento, avançando em outros espaços. Quando um grupo de estudantes passeia pelo museu, vemos a escola se fazer presente, e a conformação de um grupo coeso pode dificultar que cada estudante tenha a chance de desenvolver um espaço de interesse, de ser dono ou dona de seu tempo no trajeto pela exposição. Cada um deve derivar pelo espaço, ao menos no tanto em que o espaço permita ou suscite: há exposições que preveem seu público como um grupo uniforme que caminha ao mesmo tempo, interessando-se pelas mesmas coisas, como há aulas que, da mesma forma, colocam essa uniformidade até mesmo como pressuposto para o trabalho coletivo. Nesse caso, parte desse vagar pela exposição já abre caminho para uma indagação valiosa, se feita pelos estudantes: o que guia nosso trajeto pelo espaço do museu?

Ao longo do curso, antes dessa ida ao museu, já passamos por algumas discussões e sistematizações de procedimentos de análise possíveis em aula, tendo por disparadores representações diversas de trabalhos de arte e narrativas para trajetórias de artistas, elaboradas individual e coletivamente. No espaço da escola, nossa intervenção vai no sentido de romper com o tempo da grade escolar para que se faça um tempo de conversa e de discussão, por meio do questionamento do que possa implicar os estudantes enquanto sujeitos de seu aprendizado. Ao chegarmos ao museu, estamos em outro momento: é preciso garantir o espaço de conversa com os objetos expostos.

Por isso, a intervenção mais respeitosa quanto ao espaço de aprendizado dos estudantes, como professores, pode ser, muitas vezes, a de nos ausentarmos por um momento, na tentativa de que nossa própria presença não chegue a influenciar a relação entre estudante e objeto de análise de modo a ordená-la. Suspender a dinâmica que se estabelece no espaço abstrato das discussões em sala de aula, em que o objeto nunca está presente, e em que nos vemos na obrigação de enunciar, parafrasear, descrever, apresentar, para que neste momento o objeto possa falar por si.

O museu tem, institucionalmente, se empenhado em se aproximar do fazer pedagógico, reconhecendo seu dever de socialização de saberes e conhecimento junto a outras instituições que guardam e desenvolvem produções culturais socialmente significativas, e desse modo, passou a enfrentar uma questão que a educação formal que se pretende crítica reconhece como incontornável: a de como apresentar formas e manifestações culturais e de arte sem demandar dessas que se comportem como meros meios para fins pedagógicos, contrariamente à sua própria razão questionadora. De como possibilitar o acesso à arte sem instrumentalizá-la para fins de apaziguamento da vida social, que é por si conflituosa.

O trabalho de arte se coloca como um enigma. Resiste, de modo subversivo, à nossa capacidade de elaboração, e não seria tão importante para nós se não o fizesse. Chamamos esses objetos de arte justamente, e entre outras coisas, pela capacidade de escaparem à nossa demanda constante de respostas imediatas a perguntas iniciais e ainda pouco refinadas, da satisfação imediata que nos é entregue quando reagimos a estímulos previstos pela propaganda.

Demandar do objeto de arte ou de manifestações artísticas respostas definitivas revela a incapacidade de conviver com as contradições implícitas às dinâmicas sociais e políticas que também constituem nossa visão de mundo. No entanto, essa é a postura imediatista que frequentemente é demandada à produção de arte contemporânea. A educação que não reconhecer e valorizar nessas produções a importância do direito à dúvida e ao questionamento, acaba por abrir mão também desse direito para si.

 

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A arte mesma não nos serve em nada, e por isso nosso contato com a produção artística é a chave para o processo de aprendizado: o lidar emocional e intelectual envolvido na percepção, observação, análise e discussão de um trabalho de arte, levando-se em conta sua complexidade, nos torna mais preparados para a frustração da confirmação de nossos preconceitos, ou de nossas expectativas mais fúteis. Inclusive e principalmente à reformulação de nossas intuições ou ideias quanto a nós mesmos.

Desse modo, consideramos essa posição de estudante, esse lugar em que se encara a dúvida, em algum grau angustiante, algo a se preservar como lugar de potência, já que demanda do estudante algum posicionamento, e por conseguinte o provoca a compreender sua própria posição, pede paciência quanto aos tempos, próprios de seus processos de transformação, aos quais está sujeito e dos quais participa, alguma segurança para abrir mão, mesmo que temporariamente, de suas crenças prévias, cristalizadas. Enfim, uma postura que parece se conectar diretamente a outros lugares desafiadores que se impõem aos estudantes para além da escola.

Essa forma de estar frente a um objeto que requer e ao mesmo tempo resiste à interpretação, torna-se possível por meio da vivência de um tempo em que caiba um posicionamento reflexivo por parte do público. O tempo que demanda os encontros transformadores. Às imagens que acompanham este texto escapam o teor das conversas que ocorrem em silêncio cúmplice entre os estudantes e os objetos de seu interesse.

 

Gilberto Mariotti*

* Gilberto Mariotti é Doutor em Artes Visuais pela ECA/USP e Professor de Artes do Ensino Médio no Colégio Equipe. Este texto resulta da interlocução mantida com Celina Fernandes (Orientadora Educacional e Pedagógica), Iuri Pereira (Professor de Literatura) e Felipe Salem (Assistente de Artes e Professor de Multimeios).