As crianças do 1º ano, que estão começando o processo de alfabetização, convidavam todos para contar uma história para elas. Claro que aceitei! Acontece que não sou muito boa contadora e, para envolvê-las, não bastava que a história fosse interessante, precisava ser narrada com vivacidade e emoção. O que contar? Uma que não conheciam… O episódio da ratinha fujona do Gil, meu filho, me pareceu perfeito.
No dia marcado, as crianças estavam sentadas em roda me esperando. De cara, comecei dizendo que a história que iria contar tinha de fato acontecido e que era engraçada. Mas que grande erro cometi!
Eu estava em casa preparando o jantar e meu filho chega carregando uma gaiola. Pergunto o que era aquilo e ele responde:
− Uma rata, a Maia.
− Quem deixou a Maia morar aqui em casa? – pergunto.
− Ela não vai morar aqui, vai passar uma semana, depois vai para casa de um dos meus amigos. Pode ficar tranquila que eu vou cuidar dela – me responde.
− Mas onde está a rata? – pergunto, porque não vejo nada além de serragem. Era uma gaiola pequena com um tubo verde com entrada e saída para dentro dela mesma. E desenho no ar a gaiola com as mãos.
− Aqui no canto, embaixo da serragem, ela gosta de ficar aí.
Ele dá uma mexidinha na gaiola e a ratinha sai do esconderijo. Até que era bonitinha, uma hamster branquinha com uma faixa cinza nas costas.
Enquanto relato esta parte da história, as crianças estão atentas e concentradas. Gesticulo como se tivesse na mão uma gaiola e a chacoalhasse para a ratinha sair da serragem…
Quando vou avisar que o jantar ficou pronto, vejo que o Gil abriu o tubo verde ), colocando um papel amassado numa das pontas.
− Gil, você abriu o tubo! Assim a rata pode sair.
− Estou de olho – respondeu sem desviar sua atenção do videogame.
Mais tarde me avisa que vai ao cinema. E eu, cansada de uma semana de trabalho, vou dormir. De madrugada, meu marido vai se deitar, eu acordo e ele me diz:
− A rata fugiu!
− Não, ela fica escondida embaixo da serragem – expliquei.
− Não, ela fugiu mesmo!
− Não acredito que o Gil saiu e deixou o tubo da gaiola aberto.
− Isso mesmo! Ele revirou toda a serragem, ela não estava na gaiola…
Neste momento algumas crianças se espantam e continuo: mesmo inconformada com a falta de noção do meu filho e sabendo que tinha uma rata solta pela minha casa, continuei dormindo. Pela manhã, ao acordar, vejo as portas de todos os cômodos da casa fechadas e sementinhas de girassol (a comida da rata) organizadas em círculos no chão da cozinha, da sala, do banheiro e do escritório. Por que será que o Gil fez isso?
− Para a ratinha não sumir – responde uma das crianças!
− Pois é, mas sumir de onde? – pergunto. E elas continuam atentas e agora ansiosas com minhas pitadas de suspense.
Quando vou tomar o café da manhã, reparo que o mamão está com umas marquinhas. Será que já estavam e eu não tinha reparado ou foi a ratinha que veio provar meu mamão? Ao pegar o pão, vejo uns farelos esparramados sobre o balcão: foi o Gílson ou a ratinha que espalhou farelo de pão? Confesso que fiquei com um pouco de receio de tomar meu café da manhã… Algumas crianças já pulavam sentadas com o fato de não saber onde a rata estava e por onde tinha passado.
Então decidi que desvendaria o mistério da ratinha: comecei procurando no lixo, revirando a serragem que Gil tinha jogado fora. Nada! Depois fui andando pela casa, procurando nos cantos mais escondidos, afinal imaginei que ratos gostam de se esconder. Também nada! Logo Gil acorda e pergunto para ele por que fechou as portas e deixou as sementes de girassol em círculos. E ele me responde:
− Para saber em que cômodo ela está. Se ela come a comida, desarruma e aí eu pelo menos fico sabendo se está na sala, na cozinha… Por isso também fechei as portas, para ela não sair.
− É mesmo! – comenta uma das crianças.
− Ele teve uma boa ideia! – diz outra.
− Também achei – respondo e sigo contando:
Acontece que os ratos são capazes de passar por qualquer fresta e, pelo que observei, a ratinha só tinha desarrumado as sementes do quarto do Gil.
− Ela ainda deve estar no seu quarto – falei pra ele.
− Mas eu procurei em tudo!
− Inclusive debaixo da cama?
Neste momento explico para as crianças que a cama do Gil é, na verdade, uma bicama, ou seja, tem uma cama embaixo. Pergunto se sabem como é e várias dizem que sim. Quase iniciamos uma conversa sobre camas, bicamas e beliches. Felizmente a professora nos trouxe de volta ao foco e eu retomo com a fala do Gil:
− Mas é mínimo o espaço que tem embaixo da bicama, mãe! Como ela pode estar aí?
− O espaço suficiente para ela se enfiar.
− Decidimos, então, puxar a bicama para ver se a ratinha estava lá mesmo. Com muito cuidado, porque, se estivesse, poderíamos machucá-la. Aqui novamente dou entonação de suspense e abuso das onomatopeias:
Assim que mexemos na cama, ouvimos um barulhinho.
− Gil, se não me engano, acho que ouvi um barulhinho de rato.
Puxamos mais uma vez. Mais um ruído. Mais uma onomatopeia e eu me sentindo a verdadeira Spielberg da história oral. Um prazer ver a curiosidade das crianças para saberem se de fato a rata estava lá e se sairia ilesa da operação.
Devagar fomos tirando uma cama debaixo da outra, até sair totalmente. Em seguida levantamos o colchão e… Aqui fiz uma parada intencional na narrativa para ampliar o suspense:
Lá estava ela! Lépida e faceira passeando por todo o espaço da bicama. Olha, eu não sou muito boa de descobrir os sentimentos dos bichos, mas ela me parecia feliz da vida! Capturá-la não foi tarefa fácil. Eu ia para um lado, ela corria para outro. Mas, por fim, com o Gil me ajudando a cercá-la, consegui pegá-la com as mãos e colocá-la de volta na gaiola.
Agora as crianças respiravam aliviadas…
Mas assim que se viu presa, continuei, dava voltas sem parar pelo tubo verde, procurando a saída que agora não existia mais. E depois passou a se agarrar na grade, grunhindo indignada. Novamente me utilizei do recurso da onomatopeia. E a expressão de alívio das crianças logo se transformou em tristeza… Mas continuei:
Eu e Gil ficamos ali parados, observando. Aliviados, por termos encontrado a rata bem e tê-la colocado novamente na gaiola, e surpresos, pela reação que teve ao voltar para a gaiola.
As crianças me olhavam paralisadas. Até que uma se arrisca a quebrar o silêncio:
− Esta não é uma história engraçada…
− Não? – perguntei.
− Não – responderam todas.
− Por que você disse que era engraçada? – uma me pergunta.
− Eu achava que era……
Felizmente a professora mudou o rumo da conversa, me perguntando como eu aprendi a ler. Para quem achou que estava abafando com onomatopeias e clima de suspense, saí de lá frustrada. Mas as crianças tinham toda a razão, a história não era engraçada, nem tinha um final feliz. Por que falei que era? Porque a rata foi encontrada viva e achei graça da sua reação ao voltar para a gaiola. Imaginei que as crianças achariam o mesmo. Só que, muito mais perspicazes do que eu, reconheceram que o comportamento da rata era um profundo grito pela liberdade. Mais ainda: trazia a cruel constatação de que ela só poderia viver presa. No fundo, eu também tinha percebido a tristeza desta história, mas não quis prestar atenção. Hoje, se fosse contar de novo, diria:
É uma história que aconteceu de verdade e tem um final um pouco alegre, um pouco triste…
Luciana Fevorini
Diretora Escolar