Mulheres na Literatura – O descompasso entre presença e prestígio

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“(…) quando se põe a escrever um romance, uma mulher constata que está querendo incessantemente alterar os valores estabelecidos – querendo tornar sério o que parece insignificante a um homem, e banal o que para ele é importante. Por isso, é claro, ela será criticada; porque o crítico do sexo oposto ficará surpreso e intrigado de verdade com uma tentativa de alterar a atual escala de valores, vendo nisso não só uma diferença de visão, mas também uma visão que é fraca, ou banal, ou sentimental, por não ser igual à dele”

(Virgina Woolf)

 

O termo literatura feminina, mesmo quando usado em prêmios e homenagens, de alguma forma ressalta uma singularidade que facilmente pode acarretar em depreciação. Se considerarmos que existe Literatura de um lado e, de outro, a literatura afro, a literatura feminina, a literatura gay, a literatura transgênero podemos involuntariamente abrir um hiato que força a separação entre universal e particular. No entanto, justamente a tensão entre os polos da generalidade e da especificidade é o que traz relevância às obras artísticas.

Enfatizar especificidades pode, sim, ser uma estratégia de criar espaço para produções culturais com pouca visibilidade. No entanto, isso também contribui para reforçar o estereótipo de que existem textos maiores, que tratam de questões condizentes com os interesses da maioria, e outros menores, que dizem respeito apenas a uma parcela dos leitores.

É comum escritoras ficarem divididas quando são convidadas para participar de simpósios ou publicações que privilegiem as mulheres, duvidando se ao aceitarem assumir esse “papel feminino” não estarão contribuindo para a manutenção do status quo. Existe, assim, um espaço que precisa efetivamente ser ocupado com maior destaque, mas esses eventos exclusivos também sugerem que, para divulgar seu trabalho de forma eficaz, uma autora depende de uma cota que exclua autores homens.

As questões levantadas aqui não implicam em negar o quanto a produção literária de mulheres vem ganhando destaque progressivamente desde o início do Século XX, quando no Brasil surgiram nomes como Pagú, Gilka Machado, Cecília Meirelles, Clarice Lispector, Hilda Hilst, Orides Fontela, Carolina Maria de Jesus e Adélia Prado, entre vários outros. No entanto, nem sempre a produção de qualidade acarreta em igualdade na hora de ocupar os postos de prestígio na cena literária.

Sabemos que, por muito tempo, o impacto de pressões socioculturais para as mulheres dedicarem-se apenas à família e à casa fez com que sua produção literária fosse numericamente inferior à dos homens. No entanto, isso pode ter contribuído para gerar um ambiente que naturaliza o privilégio de um padrão de qualidade relacionado com a produção textual masculina.

Se a experiência de ser mulher na sociedade carrega toda a particularidade que esse fato produz, é de se esperar que textos vindos de tal universo possam trazer traços dessa especificidade. Isso não deve ser confundido com interesse menor ou fuga das “grandes questões”. Panelas, filhos, fraldas, vaidade, romantismo são temas que podem ser tão relevantes quanto a crise do sujeito contemporâneo, a descrença no próximo, o desejo de encontrar um sentido para a vida. Todos precisamos de alimento, proteção e cuidados para desenvolvermos nossa sensibilidade artística e filosófica. Talvez não haja uma incompatibilidade entre o elemento cíclico da vida (normalmente relacionado ao elemento feminino) e o desejo utópico de superá-lo (comumente atribuído à energia masculina).

Mesmo assim, ainda paira sobre a literatura escrita por mulheres uma sombra de imperfeição, futilidade e irrelevância. Ainda que no quesito best-sellers essa divisão entre autores e autoras pareça sem importância. O mercado está em busca de lucro e de livros que vendam, portanto, pouco importa o gênero do escritor, contanto que ele seja eficaz em atingir esses objetivos. Mas quando a estrutura de prestígio é ancorada na tradição, as mulheres ainda são frequentemente compreendidas como autores de segunda categoria.

Um exemplo disso é que para fazer o balanço dos anos 1900, alguns dos mais conhecidos veículos de comunicação elaboraram listas apontando quais seriam os romances mais importantes do Século XX e da história da Literatura Moderna. Em grande parte dessas listas, o número de romances escritos por mulheres dificilmente chegava a dez ou quinze em um total de cem. No caso da lista elaborada em 1999 pelo jornal A Folha de São Paulo, a situação é ainda mais crítica. Dentre uma centena de autores internacionais, apenas duas mulheres foram citadas: Marguerite Yourcenar (com “Memórias de Adriano”) e Virginia Woolf (três vezes citada por “Orlando”, “Mrs. Dalloway” e “Ao Farol”).

Prêmios de grande visibilidade, em geral, têm uma taxa baixíssima de autoras. O Prêmio Nobel de Literatura, para citar um caso, contemplou até o presente cem homens e apenas treze mulheres. Já o Prix Goncourt, prêmio mais cobiçado da França, entre 1903 e 2016 premiou nove autoras. Há, é claro, exemplos mais equilibrados no que concerne à premiação de autores de ambos os sexos, como bem exemplificam o Prêmio Jabuti (no Brasil) e o Prêmio Pulitzer (nos Estados Unidos).

É provável, também, que dentro de algumas décadas essas distorções sejam corrigidas por causa da tendência de crescimento, mesmo que lenta, da ocupação de cargos de prestígio por figuras do sexo feminino. Assim, se direção, júri, assessoria de imprensa tiverem no comando mulheres, é de se esperar que sua sensibilidade em relação aos textos produzidos por autoras seja maior do que no caso de instituições e eventos comandados majoritariamente por homens.

Um exemplo curioso dessa dificuldade de reconhecimento nas esferas de prestígio por parte das escritoras no âmbito brasileiro foi a homenagem feita pela FLIP à poeta Ana Cristina Cesar em 2016. Choveram críticas e polêmicas em torno da indicação de seu nome. Alguns dos argumentos que refutavam a relevância de sua obra mesclavam-se à ênfase a sua imagem – suicida, morta no auge de sua beleza, seus retratos seriam um excelente recurso de marketing para os organizadores da Feira.

Poucas críticas, no entanto, se detinham nas especificidades do trabalho poético de Ana Cristina Cesar, cuja relevância para a literatura nacional vem sendo mais e mais ressaltada nas últimas décadas. Detratores da indicação da poeta carioca chegaram a argumentar que outras autoras deveriam estar em seu lugar, elencando nomes de sua preferência para receberem tal homenagem.

Mesmo que no debate literário a questão do gosto e da argumentação estética salutarmente refutem unanimidades ou consensos, houve nessa polêmica um traço bastante peculiar. Nos textos publicados em jornais, nas conversas entre literatos e mesmo em redes sociais, foi constante o recurso de apontar Hilda Hilst, Orides Fontela ou Adélia Prado (só para citar alguns exemplos) como nomes para substituírem mais adequadamente Ana Cristina Cesar naquela homenagem.

No entanto, as autoras apontadas tinham características absolutamente diversas da poeta marginal, cuja obra dialoga com a pós-modernidade de forma bem marcada, utilizando-se da mescla de gêneros, da tensão entre subjetividade-objetividade e do pastiche como estratégias de composição textual. Portanto, quando ouvimos “troque Ana C. por esta ou por aquela poeta”, podemos correr o risco de que uma mulher escritora seja tratada como moeda de troca para outra. Como se as mais diferentes autoras do mundo estivessem confinadas à especificidade de uma escrita acorrentada ao seu sexo. E cujo valor não dependesse apenas de traços estilísticos derivados do diálogo entre língua e experiência que transmitem a sua singularidade e que definem a boa literatura independentemente de quem a produza.

 

Andréa Catrópa
Escritora e Doutora em Teoria Literária, ministrará o curso “A Palavra é Delas – Mulheres na Literatura” no Instituto Equipe Cultura e Cidadania, a partir do dia 14/03/2017.

Informações: (11) 3579-9150 / equipe@colegioequipe.g12.br